O FÍGADO QUE NÃO SALVOU O HOMEM ERRADO

Quando ouvi aquelas palavras — “O fígado não era para ele” — senti como se alguém tivesse puxado o chão por baixo de mim. O meu corpo ainda estava dorido, costurado, fraco, mas a dor física transformou-se em algo muito mais profundo… uma dor que rasga a alma e destrói cada memória de amor que pensei possuir.

— Como assim… não era para ele? — repeti, com a voz tão frágil que mal a reconheci.

O Dr. Harris esfregou a testa, como se tentasse encontrar uma forma mais suave de partir o meu coração.

— Sra. Ricci… a senhora confiou o seu corpo a nós. E isso torna tudo isto ainda mais grave. Não sei como dizer isto sem ser direto: alguém mudou o nome do recetor nas ordens cirúrgicas. O seu fígado foi para uma mulher de 28 anos chamada Alyssa Romano.

Alyssa. O nome ecoou na minha mente como um trovão distante.

— Eu… eu não conheço ninguém com esse nome — balbuciei.

Mas quando o médico pronunciou o nome uma segunda vez, senti uma pontada de inquietação. Era um nome familiar. Não porque eu tivesse conhecido alguém assim… mas porque já o tinha visto.

No telemóvel do Daniel.

Num contacto frequente. Guardado como “A.R.”.
Ele dizia que era “assunto de trabalho”.
Eu nunca questionei.

O ar desapareceu dos meus pulmões.

— Onde está o meu marido? — perguntei finalmente, tentando manter a voz firme.

— Ele deixou o hospital no dia da sua cirurgia — respondeu o médico. — Disse que precisava de “resolver coisas pessoais”.

Aquilo soou como uma facada.

— Mas ele sabia que eu ia para o bloco operatório — murmurei. — Ele prometeu que estaria aqui quando eu acordasse…

O médico inclinou a cabeça com uma compaixão que me destruía ainda mais.

— Ele não voltou.

Senti o estômago a rodopiar.
Não voltou.
Para a cirurgia que deveria salvar-lhe a vida.

Nem para ver a mulher que lhe deu parte do corpo.O Dr. Harris continuou:

— Acreditamos que alguém dentro da administração alterou as ordens cirúrgicas. Não sabemos quem. Estamos a investigar.

Mas, naquele momento, a única investigação que eu queria fazer era outra:

Porque razão o meu marido desapareceu no mesmo dia em que o meu fígado salvou… uma mulher com quem ele trocava mensagens?

 

Tentei levantar-me da cadeira, mas as pernas tremeram tanto que tive de me apoiar na parede. O médico correu para me ajudar, mas eu afastei-o.

— Não me toque — disse eu. — Eu preciso… eu preciso de ir para a enfermaria. Preciso das minhas coisas.

Mas a verdade é que eu precisava de respostas.

Voltei para o quarto lentamente, cada passo uma lâmina nas minhas costelas. A minha mala estava no canto, exatamente onde o enfermeiro a tinha colocado quando fui internada. Sentei-me na cama, respirei fundo e liguei o meu telemóvel.

Três mensagens não lidas.

Todas do Daniel.

Mensagem 1:
Desculpa por não estar aí quando acordares. Volto logo.

A mentira era evidente agora.

Mensagem 2:
Precisamos conversar quando melhorares. Há coisas que devo explicar.

 

O meu estômago embrulhou.

Mensagem 3:
Se o hospital fizer perguntas, diz que concordámos com tudo.

O coração parou-me por um instante.

Concordámos com tudo?
Concordar… com quê?

A sensação de traição era tão avassaladora que me senti novamente tonta. Apoiei a mão no peito, tentando controlar a respiração.

Foi então que vi um e-mail por baixo das mensagens.

Um e-mail enviado do computador dele, poucas horas antes da cirurgia, com o assunto:

“Ela vai doar. Está tudo preparado.”

 

O corpo do texto era curto.

“Assim que a operação começar, prendam-me o telefone. Não quero que ela descubra. A Alyssa tem prioridade. Salvem-na primeiro.”

O choque fez-me largar o telemóvel. Ele caiu no chão com um estalo seco.

Alyssa.
A mulher que recebeu o meu fígado.
A mulher para quem o Daniel pediu que “salvassem primeiro”.

As palavras ecoaram profundamente.

Ele sabia.
Ele planeou.
Ele trocou a própria vida pela dela.

E usou-me.

No final daquela tarde, o Dr. Harris voltou ao meu quarto. Trouxe consigo uma pasta.

— Precisamos que veja isto — disse.

Abri. Lá dentro, impressos, estavam vários documentos: autorizações de transferência, formulários de recetor alterados, assinaturas falsificadas. Tudo apontava para a mesma coisa:

Alguém tinha manipulado o sistema para dar o meu fígado à mulher errada.

O médico respirou fundo.

— Sra. Ricci… neste momento acreditamos que o seu marido e uma administradora chamada Caroline Brennan trabalharam juntos para alterar o procedimento.

Senti a boca secar.

— Caroline… é amiga dele — sussurrei. — Trabalha na empresa com ele.

O Dr. Harris fez um aceno grave.

— Há evidências de mensagens entre eles. A Caroline foi suspensa hoje. A polícia vai envolver-se.

Senti o mundo inclinar-se, como se estivesse prestes a cair novamente na mesa de operação.

— Ele queria salvá-la — murmurei. — Em vez de salvar a si mesmo.

— E usou o seu corpo para isso — disse o médico, baixinho. — Eu lamento muito.

As lágrimas começaram a escorrer sem aviso. Não lágrimas delicadas, silenciosas — mas lágrimas violentas, como se tudo dentro de mim estivesse finalmente a quebrar.

Eu sacrifiquei-me.
Ele desapareceu.
E agora descobria que a mulher que eu salvei…

Nem sequer devia ter sido salva por mim.

No dia seguinte, a polícia apareceu no hospital.

Precisavam de uma declaração.
Eu mal conseguia falar, mas forcei-me a contar tudo. Cada detalhe. Cada mensagem. Cada suspeita.

Foi aí que um dos detetives perguntou:

— A senhora sabia que o seu marido tem uma conta bancária conjunta com essa tal Alyssa Romano?

Eu congelei.

— Não — respondi. — Isso é impossível. Impossível.

Ele abriu uma pasta e mostrou extratos bancários.

Uma conta de poupança.
Com o nome dele…
E o dela.

Eu apertei a manta com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

— Há mais — disse o detetive, virando outra página. — Duas semanas antes da cirurgia, o seu marido comprou duas passagens só de ida para Buenos Aires.

Meu coração bateu tão forte que tive medo de cair da cama.

— Ele… ia fugir com ela? — perguntei, quase sem voz.

— É o que tudo indica — respondeu o detetive. — E precisava que ela sobrevivesse ao falecimento hepático para isso.

O ar abandonou o meu corpo.

O meu próprio marido…

Tinha planeado fugir com outra mulher.
Tinha planeado deixá-lo morrer — fingindo que era tarde demais para o transplante.
E tinha usado a minha doação…

…para salvar a amante.

Eu senti-me a desintegrar.

— Onde ele está agora? — perguntei, respirando com dificuldade.

O detetive fechou a pasta.

— Fugiu. Deixou o estado ontem à noite. Mas vamos encontrá-lo.

Durante os dias seguintes, recuperei fisicamente. Mas emocionalmente… eu estava despedaçada. Cada fio da minha vida parecia ter sido cortado, e eu estava ali, tentando recolher pedaços que já nem reconhecia.

Eu não dormia.
Não comia.
Não chorava mais — já tinha passado dessa fase.

Até que, uma manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço no refeitório do hospital, uma enfermeira aproximou-se devagar.

Era a enfermeira que cuidou de mim no pós-operatório.

— Preciso de lhe contar algo — disse ela, com os olhos marejados.

Sentou-se ao meu lado, pegou na minha mão, e respirou fundo.

— A Alyssa… ela acordou ontem. Ela perguntou… pelo Daniel.

Um arrepio percorreu-me a espinha.

— E? — perguntei.

A enfermeira engoliu em seco.

— Quando lhe disseram que o Daniel tinha fugido… ela ficou devastada. E disse algo que… acho que a senhora precisa de saber.

Os meus olhos fixaram-se nos dela.

— Ela disse que nunca pediu para receber o seu fígado. Nunca pediu ajuda ao Daniel. Nunca pediu para fugir com ele. Disse que ele a perseguia há meses. Que era obcecado. Que lhe prometia dinheiro. Vida nova. Segurança. Mas ela recusou tudo.

O sangue gelou-me.

— O… Daniel… forçou isto? — sussurrei.

A enfermeira fez um aceno trémulo.

— Ela disse que tentou denunciar. Mas ele ameaçou arruinar a família dela. A carreira dela. A vida dela. Ela nunca quis isto. Nunca quis magoá-la.

Levei a mão à boca, tentando não soluçar.

— Eu… salvei a mulher que ele tentou manipular — murmurei, incrédula. — E ele… usou-nos a ambas.

A enfermeira apertou a minha mão.

— Ela quer conhecê-la. Quer pedir desculpa. E agradecer-lhe. Disse que vocês são as verdadeiras vítimas dele.

Fiquei ali, imóvel, durante muito tempo.

Vítimas.

Sim.
Éramos.

Mas, pela primeira vez…

Eu não me sentia sozinha.

Um mês depois, o Daniel foi encontrado no Arizona.

Preso.
Acusado de fraude médica, manipulação, conspiração e tentativa de homicídio negligente.

Alyssa testemunhou.
A administradora também.
E eu… apesar da dor… também fui.

Ele não olhou para mim.

Nem uma vez.

Eu olhei para ele.
E percebi que já não havia amor.
Nem raiva.
Nem saudade.

Havia liberdade.

A liberdade que nasce quando o pior finalmente acaba…
e a verdade deixa de ser um pesadelo…

…para se tornar um renascimento.

E eu renasci.
Com menos fígado…
mas com muito mais força do que alguma vez pensei ter.